Fernando Pessoa
sábado, 20 de outubro de 2012
Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com
sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do
que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que
não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre
mim perpétuamente, me ponta traições de alma a um carácter que talvez
eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um
quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões
falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em
todas. Como o panteísta se sente árvore e até a flor, eu sinto-me vários
seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o
meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por
uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
Fernando Pessoa
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