Encontrei recentemente uma reportagem do site Grist,
do final de setembro, relatando um açougue em Londres que vende carne
humana falsa – tratando-se de carne de animais não humanos esculpida
para parecerem pedaços de corpos humanos. A matéria mostra como seria
cruel e repulsivo um açougue vender
carne humana, de pessoas mortas e retalhadas para consumo por outros
seres humanos, e tenta suavizar a crueza gráfica das carnes dizendo que é
“apenas” carne “normal”.
Onívoros podem até se sentir aliviados ao saber que esses pedaços de
corpos não são de seres humanos de verdade, mas veg(etari)anos
certamente perceberão o apelo especista da reportagem. A estratégia para
acalmar os leitores e convencê-los de que não está havendo um massacre
humano canibal é dizer que é “apenas” carne de animais não humanos, como
se de fato a vida animal não humana tivesse menos valor que a vida
humana. São “apenas” animais mortos, é normal explorá-los e matá-los
para consumo, ao mesmo tempo em que seria um absurdo explorar seres humanos – essa é a estrutura geral perceptível no apelo contido na página.
Em outras palavras, não há nenhum extermínio de pessoas por canibais
sanguinários em andamento na Inglaterra até onde se sabe, mas está
havendo sim um outro massacre. É de animais de outras espécies –
bovinos, porcos, ovinos, caprinos, frangos, peixes… -, e o mundo vê isso
como se fosse algo normal, talvez tão inocente e benéfico quanto o trabalho
de uma entidade filantrópica ou uma reunião de amigos do peito.
Afinal,
para a ética especista-antropocêntrica, esses animais existem para isso
mesmo – tanto como se dizia que mulheres existem para servir sexual e
domesticamente aos homens – e suas vidas nada mais são do que mecanismos
biológicos de produção de carne, leite e ovos.
Não há pessoas implorando pela vida perante um canibal que está
prestes a fazê-las “produzir carne”, mas há operários armados com
pistolas insensibilizadoras ou facões, a postos, prontos para matar o
próximo animal que chegar, ignorando a vontade daqueles animais de
continuarem vivendo e estarem inteiros. A partir desses funcionários de
matadouros e frigoríficos – bastante explorados para além do limite de
suas forças físicas e mentais em muitos desses lugares, a saber – não
temos mãos humanas, tóraxes desmembrados e decapitados nem pênis de
homens num balcão, mas temos pés de porcos e de bois e vacas, orelhas
amputadas, pernas decepadas e desmembradas, corpos fatiados, além de
acéns, picanhas, cupins… Mas calma, a notícia diz que são “apenas
animais”, é “apenas carne”, por isso você pode ignorar que aqueles
pedaços pertenceram um dia a seres sedentos de vida e comê-los com
tranquilidade.
Quando a humanidade parar de distinguir moralmente a carne humana da
não humana (a.k.a. “carne normal”) – aliás, quando parar de fazer essa
separação moral entre
as vítimas mortas em prol da obtenção desas carnes -, as carnes
expostas no açougue da esquina serão tão repugnadas quanto as “carnes
humanas” do açougue de Londres que os jornalistas do Grist visitaram. O
“apenas” será riscado e a frase calmante “É apenas carne, eu juro!” vai
virar o alerta “Acredite, isso é carne de verdade!”.
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