Nesta noite de domingo ele dorme, como sempre, aqui no meio da sala.
Só que, desta vez, não irá acordar nunca mais.
Meu melhor amigo, o Ferinha Mel, morreu da maneira que viveu: como um anjinho.
Olhando seu corpo peludo, sua carinha de criança cheia de cabelinhos brancos, meu coração encolhido, angustiado, exausto pelas tentativas de hoje a tarde, no mercenário hospital veterinário, de espetar e entupir seu combalido ser de remédios e soros, penso que atendi seu último desejo, no último olhar que me dirigiu.
Em nossa comunicação visceral, entendi o que me disse:
Pai, me tira desse lugar, quero partir lá onde aprendi a ser feliz desde filhotinho. A nossa casa.
Ferinha Mel nunca teve uma casinha de cachorro, teve é uma casa inteira para o cachorro.
Tanto que agora há pouco a veterinária insistiu em leva-lo de volta ao hospital e eu, em nome dele, recusei.
Nem daria tempo: seu coraçãozinho parou de repente, cercado de pessoas que o conheciam e o amavam.
Vai ficar o profundo vazio de sua presença física, sei, claro.
Meu grudinho. Meu pançudinho. Meu encrenquinha. Meu melhor amigo. Meu filho. Meu amor.
Neste velório íntimo e dolorido, em que minha alma escorre em lágrimas, continuo sabendo o que ele quer.
Que eu me lembre que ele só veio parar em meus braços para me alegrar, repartir, consolar, se doar e agradecer as zilhões de pequenas coisas que compartilhamos.
Foi ele quem me estimulava a defender os animais, todos.
Foi ele quem me mostrou que não há dia ruim que não melhore diante de uma boa lambida.
Foi ele quem me ensinou a abanar mais o rabinho e rosnar menos.
No céu dos cachorrinhos, continuará a fazer isso.
E na terra fico eu com seu legado, sua herança abençoada, sua sabedoria de carpem diem.
Ferinha Mel apenas finge que morreu, o sapequinha.
O safadinho sabe muito bem que continua aqui, para o resto de minha vida.
Uma vida que, confesso, me parece no momento bem triste.
Mas não é o que ele me deseja.
Por isso prometo: quando ficar vendo o mundo cinzento demais, chamarei por ele e suas vívidas lembranças.
Não há adeus, portanto, apenas a humana dor da perda.
Ferinha Mel, tenho apenas tudo a agradecer.
Ulisses Tavares tem agora vivo dentro do peito o Ferinha Mel a lhe consolar, ensinar. Como sempre foi e será.
Ulisses Tavares